terça-feira, 8 de maio de 2012

Propedêutica da Teoria Crítica: Horkheimer 2

Seguindo as indicações do próprio texto, podemos esboçar um quadro comparativo entre a Teoria Tradicional e a Teoria Crítica.

A Teoria Tradicional é a que se encontra nas ciências especializadas, que conhecemos desde a escola até as pós-graduações: Biologia, Física, Química. Nestas fica mais fácil identificar a descrição que veremos mais adiante. Também se faz presente em abordagens das ciências humanas como a História a Geografia e, podemos estender à Matemática e à Linguística. Quais são, enfim, as características da Teoria Tradicional?

Segundo Horkheimer, a teoria tradicional organiza a experiência à base da formulação de questões que surgem em conexão com a reprodução da vida dentro da sociedade atual. Vamos desmembrar esta última afirmação para ver o que conseguimos desenvolver a partir daqui...

A experiência, ou seja, a apreensão que temos do mundo, sob influência da teoria tradicional, já vem orientada por certas questões. Isso significa que não lidamos com uma experiência direta das coisas, como gostaríamos de acreditar. As questões que determinam nossas experiências com as coisas ou fatos estão em conexão com a reprodução da vida na nossa sociedade.

Aqui abro um pequeno parêntese para esclarecer o que pode significar essa “reprodução da vida”, que é muito importante nesse contexto, já que é ela que determina as questões que orientam nossas experiências. Citando um pequeno trecho de Friedrich Engels (1820-1895), que se encontra no prefácio do livro Origem da família, da propriedade privada e do Estado (ENGELS, 1953[1884]), veremos que “segundo a teoria materialista, o fator decisivo na história é [...] a produção e a reprodução da vida imediata” (p. 3). A produção e a reprodução da vida se apresentam em: 1) formas de reprodução da espécie e 2) produção e reprodução dos meios de existência. Ou seja, o sexo, as instituições em torno da reprodução da espécie como a família, a religião, as leis civis; as relações de trabalho, de produção e distribuição de bens, todas  juntas, são o que chamamos aqui de determinantes de nossa experiência.

Voltando à Teoria Tradicional, por ela deixar de fora do seu sistema a gênese social das questões que elabora, as situações reais e as finalidades perseguidas em suas aplicações, acaba se preocupando apenas em produzir conhecimentos aplicáveis ao maior número possível de ocasiões. Por isso, reproduz, sem perceber, as estruturas sociais que a condicionam. Não leva em conta que essas condições todas estão na sua base, desde a escolha do tema e sua delimitação à formulação do problema. Podemos dizer que a Teoria Tradicional está alheia a – ou alienada de – suas próprias motivações e estruturas de apreensão da realidade.

A Teoria Crítica da Sociedade tem como objeto não o fato isolado, o dado científico, mas justamente aqueles que produzem e reproduzem o conhecimento, ou seja: o objeto da Teoria Crítica é constituído pelos homens como produtores de todas as suas formas históricas de vida. Sendo assim, nem mesmo as ciências da natureza estariam lidando apenas com fatos naturais, mas sempre com as relações entre seres humanos, em sociedade, exercendo seu poder sobre a natureza e sobre os próprios homens.

A Teoria Crítica não trabalha com dados, pois eles nunca são apenas dados, mas com situações, pois a situação é um conceito que designa um complexo de relações [esta ideia pode ser derivada das influências da Gestalt sobre Horkheimer, pois é também compartilhada por outro autor próximo da Gestalt, Kurt Lewin (1890-1947) (BLEGER, 1984)].

O problema para a teoria crítica não é apenas constatar e prever segundo leis de probabilidade. É preciso ir além da constatação e da suposta neutralidade estatística. A Teoria Crítica busca compreender: não apenas o objeto, mas também o sujeito, ou, seguindo mais de perto o texto, as formas de percepção; quais as motivações subjacentes à formulação das questões de pesquisa; quais os sentidos das respostas.

Em suma, a teoria crítica toma como objeto as relações de poder subjacentes às atividades humanas, dentre elas, a ciência e suas especialidades. Busca-se contextualizar historicamente os conhecimentos humanos em relação às suas situações concretas de existência.

Assim concluímos nosso estudo sobre o primeiro parágrafo, nossa próxima aventura será, obviamente, fazer esse mesmo exercício com o segundo parágrafo!

REFERÊNCIAS

BLEGER, José. Psicologia da conduta. Trad. Emilia de Oliveira Diehl. Porto Alegre: Artes Médicas, 1984.

ENGELS, Friedrich. El origen de la família, la propriedad y el Estado: em relación com lãs investigaciones de L.H. Morgan. Moscou: Editorial Progreso, 1953.

FRAGMENTOS 1: Espíritos livres e grande liberação

Não exatamente que eu goste, mas se tornou um hábito inevitável – ainda não sei julgar se bom ou mau – ler coisas e parar, abandonar, para, sabe-se lá quando, retomar. Tentador é disfarçar esse hábito com pompas eruditas, chamando-o de “leitura fragmentária”. Se os autores de aforismos podem escrever por fragmentos, por que não poderia eu, racionalizando, ler por fragmentos? Mais tentador ainda é escrever um blog e dar o título abusado de “fragmentos” a posts que resultam dessas leituras e das reflexões subsequentes. A verdade, no entanto, é menos pretensiosa. Certa displicência na leitura e na escrita, unida às diversas atividades cotidianas e a um sentimento de que é bom publicar alguma coisa por aqui de vez em quando... essas forças todas tiveram como resultante esse fragmento que começo a escrever hoje. O risco é eu ser tão indisciplinado que não faça jus ao plural do título “FRAGMENTOS”!

Ninguém melhor para estrear os “fragmentos” assistemáticos que o autor contrário a sistemas por excelência, do qual sei que devo me aproximar, mas confesso sentir um certo desconforto em nossos encontros: Friedrich Nietzsche (1844-1900). Já li uns três livros sobre o autor, alguns textos aleatórios e uns dois livros do próprio, sempre me encantando e desencantando com o tão aclamado Nietzsche. Dezenas de vezes me prometi um estudo mais disciplinado. Seguindo as impressões que os especialistas deixaram em mim, defini que deveria começar pelo livro em que Nietzsche expõe mais claramente suas próprias ideias, tornando-se independente das influências de Arthur Schopenhauer (1788-1860) e Richard Wagner (1813-1883), publicado em 1878, Humano, demasiado humano.

O subtítulo, “um livro para espíritos livres”, é bastante sugestivo. No Prólogo, escrito seis anos depois da primeira edição, Nietzsche esclarece que não existem tais espíritos livres, são uma ficção, quase que amigos imaginários com os quais ele buscava dialogar enquanto escrevia os pensamentos que o tomavam de assalto após um longo período de convalescença. Desejava que esses espíritos livres viessem a existir no futuro, em carne e osso.

Então a liberdade é um valor defendido por Nietzsche? Claro que sim! Fala ele na “grande liberação”. Então Nietzsche não é pessimista? Parece-me que não, também é ele que vê na grande liberação a cura radical para o pessimismo. Só falta achar que Nietzsche também defende a justiça... e não é que defende? Ele demonstra um apreço pelo desenvolvimento da vida e afirma que a injustiça é maior onde a vida se desenvolveu ao mínimo. Seria a doença uma fraqueza discriminada pelo autor conhecido como entusiasta da força e possível inspirador do nazismo? Também não, para ele a doença é um caminho para uma saúde superior. E não é que Nietzsche realmente tem momentos encantadores?

Como se daria a grande liberação? Uma revolução? Sim, mas não coletiva, individual. A liberação não deixa de ser uma autonomia, uma determinação própria dos valores, mas vem de um impulso e de uma vontade desconhecidos, de uma certa gravidez inconsciente. A princípio, essa ideia não me agrada, mas antes de me desencantar novamente com Nietzsche, vou tentar entender o que ele quer dizer com isso...